“É uma luta contínua”, explica o historiador Manuel Jesús Roldán à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
“Temos que fazer pedagogia todos os anos para explicar a quem vem aqui, que isso é uma enorme riqueza de séculos”.
Roldán se refere ao capirote, aquele cone que os nazarenos ou penitentes usam na cabeça nas procissões da Semana Santa na Espanha — e em alguns países latino-americanos, como a Colômbia —, e que é possivelmente um de seus principais ícones.
E também à própria celebração da Páscoa, uma “festa viva” que evoluiu ao longo dos séculos, “e que, especialmente no sul de Espanha, tem um significado festivo, é uma curiosa combinação de viver a paixão e misturá-la com a ressurreição”.
Do Domingo de Ramos ao Domingo de Páscoa, as ruas da Espanha se enchem de fiéis e curiosos que chegam para acompanhar as procissões da Semana Santa, nas quais as diferentes confrarias ou irmandades de penitentes caminham com imagens da paixão de Cristo.
Estas enormes esculturas, que costaleros carregam sobre os ombros, são acompanhadas por religiosos, músicos e dezenas de penitentes, homens e mulheres que vestem longas túnicas e, na maioria das vezes, usam um capuz pontudo na extremidade.
Esta espécie de cone, feito de papelão e, mais recentemente, também de plástico, tem origem em uma das instituições mais sinistras da história do país: a Inquisição Espanhola.
O Santo Ofício
Os condenados por esta instituição, fundada por reis católicos no século 15 para manter a ortodoxia católica em seus territórios, eram obrigados a usar o capirote e uma pequena túnica de tecido simples chamada “sambenito” para identificá-los e constrangê-los durante os autos de fé.
“O auto de fé era o grande teatro realizado pelos tribunais da Inquisição que tinha o objetivo, em teoria, de reincorporar os hereges à Igreja, mas que, em essência, o que fazia era fazer as pessoas passarem vergonha pública, as manchava socialmente e excluía da sociedade, tanto o condenado como todos os seus descendentes“, explica à BBC News Mundo o historiador José Martínez Millán, autor de La inquisición española (“A Inquisição Espanhola”, em tradução livre).
Durante três séculos, milhares de pessoas foram condenadas na Espanha pelos tribunais religiosos da Inquisição, acusadas de diferentes crimes, que podiam ir da blasfêmia até a heresia. Muitos destes condenados, sobretudo nos primeiros anos, acabavam na fogueira.
Imagem de ritual de Páscoa — Foto: Getty Images/Via BBC
Mas antes, a Inquisição dava a eles a oportunidade de renunciar aos seus pecados e proclamar sua conversão à fé católica. Aqueles que faziam isso, os chamados “penitentes”, obtinham a graça de serem estrangulados antes de serem queimados na fogueira. Os condenados à morte que não se arrependiam de seus pecados eram queimados vivos.
Os autos de fé eram realizados em praça pública, geralmente na primavera ou no outono, quando havia sido reunido um número suficiente de réus. Era montada uma espécie de palco, onde se sentariam as autoridades eclesiásticas, seculares e os réus — havia, inclusive, um ensaio na véspera.
Semanas antes, eram contratados pintores e alfaiates para confeccionar os sambenitos e capirotes que seriam usados pelos condenados. Os desenhos e as cores usadas para pintá-los variavam dependendo da heresia.
Vestidos assim, os réus eram conduzidos em procissão, como forma de humilhação pública, até o local onde era celebrado o auto de fé.
Uma vez lida a sentença, os condenados à morte eram levados à fogueira, que costumava ficar nos arredores da cidade, para que as autoridades civis pudessem executar a sentença. Os demais eram obrigados a usar o sambenito durante toda a duração de sua pena.
Para não esquecer
Mas a provação não acabava por aqui.
Os sambenitos e os capirotes eram levados depois até a igreja paroquial para serem pendurados nas naves com os nomes dos condenados.
“A partir de então, na missa, eles sempre tinham que se sentar debaixo do seu sambenito, assim como seus filhos ou netos, e a mancha perdurava por gerações, o que é uma das grandes crueldades da Inquisição”, destaca Martínez Millán, professor de história moderna na Universidade Autônoma de Madri, na Espanha.
Quando uma pessoa queria, por exemplo, entrar na universidade ou pedir um título de uma ordem militar, tinha que apresentar um certificado de limpeza de sangue que comprovasse que, ao longo de três gerações, ninguém havia sido condenado pela Inquisição.
Os sambenitos pendurados nas igrejas serviam de testemunho, e a única forma de limpar o nome de alguém era o esquecimento — mas, como explica Martínez Millán, “o esquecimento não existia”.
Os grandes autos de fé deixaram de ser celebrados na segunda metade do século 18, quando começaram a ser organizados dentro das instituições da Inquisição, no que veio a se chamar “autillos”.
Um deles inspirou aquela que é possivelmente a pintura mais famosa que existe sobre a Inquisição, o quadro Auto de fé da Inquisição, de Francisco de Goya.
No centro da obra, vestido com um capirote e sambenito adornados com chamas, um condenado ouve sua sentença com os olhos baixos e atitude resignada, enquanto uma multidão de clérigos, autoridades e figuras não identificadas gera uma atmosfera sufocante. Ao lado do palco, outros três condenados, que também usam capirote, aguardam a sua vez.
Não está claro, no entanto, como este cone de papelão passou da Inquisição para as celebrações da Semana Santa.
Irmandades de penitentes
Os historiadores acreditam, no entanto, que as irmandades de penitentes adotaram o capirote, que pelo seu formato também simbolizava a tentativa de se aproximar de Deus, por tê-los visto naqueles penitentes condenados.
As primeiras irmandades que se formaram no século 15, depois de São Vicente Ferrer pregar a penitência, e que saíam em procissão, eram muito diferentes das que conhecemos hoje.
A penitência envolvia autoflagelação, por isso estes homens chicoteavam as próprias costas despidas com cordas e correntes em um espetáculo sangrento.
Nesta época, “o culto à Vera Cruz (a Verdadeira Cruz) e ao sangue de Cristo começa a ser reivindicado, por isso se começa a levar em procissão uma série de imagens que geralmente costuma ser de um crucificado”, explica Manuel Jesús Roldán.
Este crucificado da Vera Cruz se estende por toda a Espanha e América Latina.
Os penitentes eram anônimos, cobriam o rosto com uma máscara e usavam uma túnica simples de tecido barato, geralmente branca.
Os historiadores concordam que a primeira destas irmandades a adotar o capirote no final do século 16 é a Irmandade da Hiniesta, se Sevilha, que tem uma origem medieval e continua existindo até hoje.
“A Irmandade da Hiniesta adapta aquele cone de papelão à máscara que seus penitentes usavam, e passa a diferenciar dois tipos de ‘irmãos’: o ‘irmão de sangue’, que se autoflagelava e usava a máscara caída para trás, e o ‘irmão de luz’, que estava encarregado de carregar uma vela e usar o capirote”, diz Roldán, autor de Historias de la Semana Santa que nunca te contaron (“Histórias da Semana Santa que nunca te contaram”, em tradução livre).
No século 17, a maior parte das confrarias da Espanha já utilizava este cone, dando outra aparência aos penitentes, que a essa altura passaram a ser chamados de nazarenos.
Cada confraria adotou uma cor. Muitas escolheram o roxo, que era o penitencial; mas algumas, o vermelho, pelo simbolismo sacramental; outras, o verde, pelo culto à Vera Cruz; e outras mantiveram o branco ou adotaram o preto, que virou moda no fim do século 18.
Desde então, as irmandades e procissões estiveram à beira de desaparecer com a chegada de Carlos 3° ao trono. “A penitência era algo que entrava em conflito com as ideias do Iluminismo, por isso era proibido autoflagelar-se publicamente na rua, cobrir o rosto com máscara e sair à noite”, explica Manuel Jesús Roldán.
Após a Guerra da Independência e o retorno do absolutismo, as irmandades voltaram à sua atividade. Mas a penitência, que já era considerada uma coisa de séculos passados, nunca foi resgatada.
Hoje, as procissões da Semana Santa na Espanha vão muito além da religião — e fazem parte de uma cultura popular “que tem um significado festivo, identitário, que se conecta com o retorno a cada ano a uma data, a um povo conhecido, a um sentimento de cidade e uma forma de compreender a vida que mantém viva esta festa”, afirma Roldán.
O historiador lembra que algumas interpretações as associam ao importante substrato da cultura clássica romana que existe na Espanha, onde no fim de março se celebravam as festas da primavera.
“Embora as procissões sejam muito sérias e rigorosas, também têm aquele significado festivo tradicional”, argumenta Roldán.
“Por isso, é difícil fazer quem é de fora entender que aqueles que se vestem de nazarenos não são apenas senhores presos ao passado, mas também podem ser jovens, idosos, mulheres, homens, pessoas de esquerda, de direita… tem até ateus!”
Veja abaixo um vídeo sobre o uso da túnica na Procissão do Fogaréu, em Goiás.
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