Dois estranhos unidos por um mistério sobre o qual nada sabem tentam suportar as agruras com que são obrigados a conviver até que consigam retomar suas vidas — grande parte dos suspenses já rodados poderia ter essa descrição. Acontece que “Dois”, da diretora espanhola Mar Targarona, tem algumas peculiaridades.
Sara e David, o casal de estranhos interpretados por Marina Gartell e Pablo Derqui, são, literalmente, uma só carne: foram costurados por um maníaco qualquer, talvez numa brincadeira satânica que lhe trouxesse gozo perverso. Depois, à medida que a história avança, se vai saber que os protagonistas não são assim tão desconhecidos um para o outro.
Todos os detalhes do roteiro de Christian Molina, Cuca Canals, Daniel Padró e Mike Hostench foram pensados para incomodar. Sara e David estão trancados no que parece ser um quarto de motel (e essa é uma informação relevante), não exatamente pequeno, mas de toda forma claustrofóbico, devido à baixa luminosidade e ao tom pesado das cortinas e do papel de parede, elementos cênicos que sobressaem, graças à fotografia.
Quando se dão conta do que se passou com eles, a agonia que se espalhava com método cede lugar a um desespero opressivo, que precisam controlar, para que não se firam. Atividades banais, como se levantar ou aliviar a bexiga, viraram um tormento, e ao sentirem que realmente foram envolvidos a contrapelo num jogo sádico que testa sua resistência física e moral — conclusão inequívoca a que se chega, por exemplo, verificando-se que o telefone verde de disco, que poderiam usar para pedir socorro, está mudo (mas toca o réquiem de Mozart se acionado) —, eles têm de descobrir um meio de dar um fim àquilo, apesar da dor que os lancina.
Apesar dessas adversidades, as suspeitas que Sara teima em levantar contra David não tornam as coisas mais brandas. Há, no entanto, certas evidências que vêm à baila para que se resolva o mistério de “Dois”. Além do telefone enigmaticamente programado para tocar Mozart, todos os objetos em cena estão dispostos em pares, cercados de paredes adornadas por quadros de Francisco Goya (1746-1828). Depois de muito sacrifício, os personagens de Gartelle Derqui conseguem abrir a gaveta de um móvel e tiram de lá duas Bíblias.
A primeira está marcada em Isaías 11:6-9, onde se lê que “o lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao bode; o bezerro, o leão novo e o animal cevado andarão juntos, e uma criança os guiará”; da segunda, cai uma foto de mulher, Rita, duas revelações que os poderão levar à chave do enigma e, quiçá, a terem cada qual seu corpo.
A menção ao texto do profeta Isaías é uma referência óbvia à urgência da chegada de um novo tempo, sem as tantas mentiras que regulam as vidas de Sara e David. Complemento ao Apocalipse, de São João, as palavras de Isaías também remontam a um cenário escatológico, em que se imagina como será o mundo depois de finda a era do engano, ou seja, quando o reinado do homem achar termo, se abrirem as portas do Céu e transcorrer, enfim, o Juízo Final.
O discurso religioso é um pano de fundo estimulante em “Dois”. Conspurcada pelo fanatismo de quem está por trás dos maus-tratos infligidos aos ocupantes do quarto, a mensagem bíblica poderia servir como uma recomendação para eles, visto terem ambos sempre se orientado pelo ludíbrio e pela concupiscência. Sara tem a impressão de que sua pena se deve ao adultério contra o marido, Mario, que por seu turno desenvolve uma monomania pelo rival, não sem motivo.
No caso de David, esse fora o expediente que o traído achara para fazê-lo largar a prostituição. Mario os teria unido visceralmente por serem um só, faunos diabólicos que multiplicam o pecado sobre a Terra.
Rita, a mulher da foto, é na verdade a mãe de gêmeos siameses, conforme se lê em recortes de jornais colados na parede por alguém que quisesse dissipar um mal-entendido. Segundo a matéria, Rita morrera durante o parto e o pai, esquizofrênico, tivera de criar os filhos por sua própria conta.
Como se assiste no desfecho de “Dois”, não fora Mario quem cosera Sara e David, os gêmeos xifópagos de que fala o texto, separados depois de um procedimento delicado, que demandou horas de cirurgia. Num esforço quanto a retificar o que julga um erro, uma vez que os irmãos dissiparam suas vidas com assombrosa competência, esse homem os colocara juntos outra vez, para que, assim, se emendassem.
Mas a tentativa experimenta um duplo fracasso: valendo-se de um abridor de cartas, ao longo de uma sequência um tanto longa e muito bem-enquadrada, Sara livra-se da sutura que a ligava a David, mas uma invencível hemorragia sela o destino deles. Em minutos, acaba por perecer, junto com o irmão, já abatido por um evento inesperado.
É como se os dois voltassem ao útero materno, agora cada qual em seu organismo, mas conservando a harmonia de antes, mencionando a ideia de yin-yang da filosofia chinesa, explicitada numa arte que serve de logotipo do filme quando da subida dos créditos. Como se Targarona nos dissesse que ninguém foge à própria sina.
Filme: Dois
Direção: Mar Targarona
Ano: 2021
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 8/10