A CIA divulgou uma série de vídeos —em russo— que fazem parte de uma campanha para que os espiões russos compartilhem segredos com os americanos. A publicação ocorreu entre setembro de 2023 e janeiro deste ano.
Os EUA têm tecnologia para conseguir grampear comunicações e satélites para acompanhar com imagens o que acontece no chão, mas as agências de inteligência ainda precisam recrutar agentes duplos que dão informações privilegiadas.
EUA e Rússia são duas das maiores potências militares do mundo. A rivalidade entre os dois países remonta ao período da Guerra Fria, entre as décadas de 1940 e de 1990. Os dois detêm os maiores arsenais nucleares e estão entre os que mais têm gastos militares no planeta, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês) –os EUA estão em primeiro lugar, e a Rússia em terceiro, atrás da China.
Em um dos vídeos da CIA (veja acima), um narrador tenta convencer o público-alvo (ou seja, russos que têm informações de inteligência a passar) de que há corrupção na elite russa e que as forças armadas do país são precárias.
“Os que estão à sua volta podem não querer ouvir a verdade. Mas nós queremos. Você não é impotente”, afirma.
Nas imagens está um homem que se diz patriota, ama a Rússia e relata já ter sido paraquedista. O personagem e conclui que o “inimigo de verdade” está dentro da própria Rússia:
“A liderança do país o vendeu em troca de palácios e iates em um momento em que nossos soldados comem batatas podres e usam armas pré-históricas. Nossa gente é obrigada a pagar subornos só para conseguir trabalho”, diz o homem no vídeo.
Os EUA têm conseguido recrutar um grande número de espiões na Rússia para se tornar agentes duplos, afirmou o chefe da CIA, William Burns, em um artigo publicado no fim de janeiro na revista Foreign Affairs.
No texto, ele diz que o descontentamento dos russos com a guerra com a Ucrânia está corroendo a liderança do país, e que isso “está criando uma oportunidade única para a CIA, que só ocorre uma vez a cada geração”, para recrutar novos informantes. De acordo com Burns, a agência não tem perdido a chance de converter espiões russos em agentes duplos.
Uma autoridade da CIA afirmou à agência de notícias Reuters que a estratégia tem funcionado, pois mais russos os têm procurado.
Em janeiro, o porta-voz do governo russo, Dmitry Peskov, falou, em tom de deboche, que a agência estava perdendo tempo ao tentar alcançar os russos na rede social X, proibida na Rússia: “Alguém precisa dizer à CIA que em nosso país (a rede social russa) VKontakte é muito mais popular e que o público do VKontakte é muito maior”.
Contato anônimo
Em 2022, a CIA já havia ampliado seus esforços para que os russos contatassem a agência de forma anônima. Eles montaram um site que só é acessível para quem usa um navegador chamado Tor, com características que permitem mais anonimato.
Então, pouco após o começo da guerra, a CIA publicou instruções em russo sobre como baixar o Tor e acessar esse site da agência em suas páginas.
O Tor não é uma garantia plena de que o usuário vai estar protegido do monitoramento russo, mas é a forma mais protegida para falar com a CIA.
Segundo a agência de notícias Associated Press, o governo russo proíbe diversos sites no país, e a população tem experiência em baixar ferramentas que driblam as restrições à navegação na internet.
Mark Kelton, que trabalhou na CIA até 2015 como chefe de contrainteligência, diz que “quando as pessoas decidem procurar (agências estrangeiras), elas estão cientes do que estão fazendo e de quais são os riscos”.
As agências precisam sinalizar aos possíveis informantes que estão preocupadas com a segurança deles, segundo Kelton. A sinalização não é gratuita, pois há um histórico de agentes duplos russos que foram descobertos e envenenados e assassinados (veja mais abaixo).
Um bêbado ou um funcionário importante do Kremlin?
Uma das garantias que a CIA dá aos agentes duplos é que se a situação deles ficar muito perigosa, eles podem ser retirados de seus países e ir viver nos EUA.
A CIA tem um programa chamado NROC, sigla em inglês “Centro Nacional de Operações de Realocação”, para que agentes duplos vivendo nos EUA tenham segurança depois de colaborar com os serviços de espionagem americano.
A agência não só retira as pessoas de seus países como lhes dá casa e dinheiro para que eles se estabeleçam nos EUA.
Uma dessas histórias ficou conhecida em 2019. Há décadas, a CIA conseguiu recrutar um funcionário público russo chamado Olegov Smolenkov. Ele chegou a subir na hierarquia do governo russo até chegar ao posto de assessor de uma autoridade próxima de Putin.
Smolenkov acabou se tornando importante para a CIA investigar como o governo de Putin tentou interferir nas eleições americanas em 2016. A situação passou a ficar arriscada para ele, e a agência decidiu retirá-lo da Rússia em 2017.
Dois anos depois, em 2019, a imprensa americana soube que um agente duplo havia sido extraído e noticiou a história, mas sem nomeá-lo.
Os russos, então, revelaram publicamente a identidade de Smolenkov, e, ao mesmo tempo, o descreveram como um homem que bebia demais, que abandonou a própria mãe e que não tinha contato direto com Putin.
Mansão então usada pela diplomacia russa em Long Island, Nova York — Foto: REUTERS/Rashid Umar Abbasi
Os riscos de mudar de lado
Vladimir Putin é familiarizado com o mundo da espionagem e dos serviços de inteligência: antes de se tornar político, ele foi um agente da KGB, o serviço de informações da União Soviética, e passou anos trabalhando na Alemanha Oriental.
Há dois casos famosos de autoridades russas que mudaram de lado e deram informação ao MI6, o serviço de inteligência do Reino Unido.
Morte com polônio-210
Alexander Litvinenko é fotografado em UTI no hospital University College de Londres, em novembro de 2006, 3 dias antes de morrer envenenado com polônio — Foto: Natasja Weitsz/Getty Images/Arquivo
Ataque com Novichok
Sergei Skripal em cela para réus durante julgamento em corte militar de Moscou, em 2006 — Foto: Yuri Senatorov/Kommersant/Reuters
Na época do envenenamento, Putin disse o seguinte: “Ele era simplesmente um espião, um traidor da pátria-mãe. Existe esse conceito – traidor da pátria-mãe. Ele era um destes. Ele é simplesmente um canalha, só isso”.
A vida de agente duplo
Robert Hanssen, um ex-espião do FBI que foi condenado por trabalhar para a Rússia — Foto: FBI/Via Reuters
Tanto EUA como Rússia tentam recrutar agentes duplos para descobrir segredos um do outro há décadas.
Hanssen recebeu dinheiro e diamantes dos russos e, em troca, passou diversos segredos para os russos. Isso aconteceu durante a Guerra Fria e também nos anos após o fim da União Soviética.
Ele disse aos russos, por exemplo, que os americanos tinham construído um túnel abaixo da embaixada soviética em Washington DC.
Além disso, Hanssen também contou ao governo russo que havia três agentes da KGB que agiam como ele mesmo, mas a serviço dos EUA: os três eram agentes duplos, e foram executados depois que a identidade deles foi revelada.
Hanssen foi descoberto e preso nos EUA em 2001. Ele morreu na prisão em 2023.