Da mesma forma, o cristianismo costuma ser frequentemente utilizado para definir a identidade e os valores dos Estados Unidos e da Europa, destacando o contraste entre esses valores e os do Oriente Médio – os “outros”.
Ainda assim, um breve olhar para uma religião antiga, ainda praticada hoje em dia, indica que muitos dos ideais, crenças e cultura considerados típicos do Ocidente, na verdade, podem ter suas raízes no Irã.
A maioria dos acadêmicos acredita que o antigo profeta iraniano Zaratustra (Zartosht, em persa, ou Zoroastro, em grego) tenha vivido em algum momento entre os anos 1000 e 1500 a.C.
Antes de Zaratustra, os antigos persas veneravam as divindades da antiga religião irano-ariana, homóloga à religião indo-ariana que, mais tarde, viria a ser conhecida como hinduísmo.
Mas Zaratustra condenava aquela prática. Ele defendia que Deus – Ahura Mazda, o Senhor da Sabedoria – era o único a ser louvado.
Com isso, ele contribuiu não só para a grande divisão entre os iranianos e os indo-arianos, mas provavelmente apresentou à humanidade sua primeira religião monoteísta: o zoroastrismo.
Zoroastro ou Zaratustra provavelmente viveu entre os anos 1000 e 1500 a.C. — Foto: Alamy/Via BBC
A ideia de um Deus único não foi o primeiro princípio essencialmente zoroástrico a se introduzir em outras religiões importantes, especialmente as três maiores: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo.
Os conceitos de céu e inferno, o dia do julgamento, a revelação final do mundo, os anjos e os demônios também se originaram nos ensinamentos de Zaratustra e no conjunto posterior de literatura zoroástrica inspirado por ele. A própria ideia de Satanás é fundamentalmente zoroástrica.
Na verdade, toda a fé do zoroastrismo é baseada na luta entre Deus e as forças do bem e da luz (representadas pelo Espírito Santo, Spenta Manyu) e Ahriman, que dirige as forças do mal e das trevas.
Enquanto os homens precisam escolher o lado ao qual pertencem, a religião ensina que, no fim, Deus irá prevalecer e os próprios condenados ao fogo do inferno irão desfrutar das bênçãos do paraíso (que, aliás, é uma antiga palavra persa).
O zoroastrismo é considerado a primeira religião monoteísta do mundo — Foto: Alamy/Via BBC
Mas como as ideias de Zoroastro chegaram às religiões abraâmicas e outras?
Estudiosos indicam que muitos desses conceitos foram apresentados aos judeus da Babilônia quando foram libertados pelo imperador persa Ciro, o Grande.
Eles se infiltraram no pensamento dominante dos judeus, quando surgiram figuras como Belzebu.
Após as conquistas de terras gregas pelos persas durante o auge do Império Aquemênida (550-330 a.C.), a filosofia grega tomou um rumo diferente.
Os gregos acreditavam que os seres humanos têm pouca independência e que seu destino estaria à mercê dos seus diversos deuses, que frequentemente agiam conforme seus caprichos e fantasias.
Mas, depois de conhecerem a religião e a filosofia iraniana, os gregos começaram a sentir que eram os senhores dos seus destinos e que suas decisões estavam em suas próprias mãos.
O zoroastrismo já foi a religião oficial do Irã e também era amplamente praticada em outras regiões habitadas pelos povos persas, como o Afeganistão, o Tajiquistão e grande parte da Ásia central.
Atualmente, o zoroastrismo é uma religião minoritária no Irã e reúne poucos fiéis em outras partes do mundo. Mas seu legado cultural é inegável.
Muitas tradições zoroástricas continuam a inspirar e caracterizar a cultura iraniana.
Fora do país, sua influência também é considerável, principalmente na Europa ocidental.
Rapsódia zoroástrica
Séculos antes que Dante Alighieri (1265-1321) escrevesse A Divina Comédia, o Livro de Arda Viraf descreveu em numerosos detalhes uma viagem para o céu e o inferno.
Seria possível que Dante tivesse ouvido falar do relato do viajante cósmico zoroástrico, que assumiu sua forma final perto do século 10 a.C.?
A similaridade entre as duas obras é desconcertante, mas tudo o que existe são apenas hipóteses.
Zoroastristas realizam suas práticas em templos do fogo como este, em Yazd, no Irã — Foto: Alamy/Via BBC
Mas existem outros pontos em que a “conexão” zoroástrica é menos obscura.
O profeta iraniano aparece segurando um globo brilhante no quadro Escola de Atenas, do pintor renascentista Rafael (1483-1520).
E o livro alemão sobre alquimia Clavis Artis, que data de entre o final do século 17 e o início do século 18, foi dedicado a Zaratustra.
A obra apresenta diversas ilustrações do profeta iraniano com temas cristãos.
Zoroastro “veio a ser considerado [na Europa cristã] um mestre da magia, filósofo e astrólogo, especialmente após o Renascimento”, diz Ursula Sims-Williams, da Escola de Estudos Africanos e Orientais da Universidade de Londres.
Zoroastristas deixam os corpos dos mortos nas Torres do Silêncio, como esta em Chilpyk, no Uzbequistão — Foto: Alamy/Via BBC
Hoje em dia, na Europa, a menção do nome Zadig traz imediatamente à mente a marca de moda francesa Zadig & Voltaire.
Suas roupas podem não ter origem zoroástrica, mas a história por trás do seu nome certamente remonta ao zoroastrismo.
Escrito em meados do século 18 por ninguém menos que Voltaire (1694-1778), o romance Zadig, ou Destino, conta a história do herói zoroástrico persa do mesmo nome que, após uma série de adversidades e julgamentos, acaba se casando com uma princesa da Babilônia.
Às vezes irreverente e não baseado na história, o conto filosófico de Voltaire surgiu do seu real interesse pelo Irã, compartilhado por outros expoentes do Iluminismo.
Voltaire era tão apaixonado pela cultura iraniana que ficou conhecido nos seus círculos de contatos como Sa’di.
Da mesma forma, o Divã ocidento-oriental de Goethe (1749-1832), dedicado ao poeta persa Hafez, apresenta um capítulo com temática zoroástrica, enquanto o escritor irlandês Thomas Moore (1779-1852) lamentava o destino dos zoroastristas iranianos no seu romance Lalla Rookh.
Não foi apenas na arte e na literatura ocidental que o zoroastrismo deixou a sua marca.
Na verdade, a antiga religião também fez uma série de aparições musicais em palcos europeus.
‘A Escola de Atenas’ (1511), de Rafael, inclui uma figura (em detalhe, acima) que muitos historiadores acreditam ser Zoroastro — Foto: Alamy/Via BBC
Além do personagem sacerdote Sarastro, a ópera A Flauta Mágica, de Mozart (1756-1791) é repleta de temas zoroástricos, como a luz contra as sombras, julgamentos com fogo e água e a busca da sabedoria e do bem acima de tudo.
Mais recentemente, Farrokh Bulsara – mais conhecido como Freddie Mercury (1946-1991) – tinha imenso orgulho das suas origens persas zoroástricas.
“Sempre andarei por aí como um papagaio persa”, observou ele em uma entrevista, “e ninguém vai me impedir, meu bem!”
Sua irmã Kashmira Cooke também refletiu sobre o papel do zoroastrismo na família, em uma entrevista em 2014.
“Nós, enquanto família, temos muito orgulho de sermos zoroastristas”, disse ela.
“Acho que o que a fé zoroástrica [de Freddie] deu a ele foi o trabalho duro, perseverar, ir atrás dos seus sonhos.”
Gelo e fogo
Mas, quando o assunto é música, o melhor exemplo da influência do legado do zoroastrismo seja o poema sinfônico Assim Falou Zaratustra, de Richard Strauss (1864-1949), que formou a espinha dorsal de grande parte do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick (1928-1999).
A obra de Strauss deve sua inspiração ao livro mais importante de Friedrich Nietzsche (1844-1900), que leva o mesmo nome.
O texto segue um profeta chamado Zaratustra, mas muitas das ideias propostas por Nietzsche, na verdade, contrariam o zoroastrismo.
O filósofo alemão rejeitava a dicotomia entre o bem e o mal, tão característica do zoroastrismo, e, por ser ateu, Nietzsche não via sentido no monoteísmo.
Além de Freddie Mercury e Zadig & Voltaire, existem outros exemplos claros da influência do zoroastrismo sobre a cultura popular contemporânea do Ocidente.
Ahura Mazda ofereceu seu nome para a companhia automobilística japonesa Mazda e serviu de inspiração para a lenda de Azor Ahai (um semideus que triunfa sobre as trevas) em Game of Thrones, de George R. R. Martin, como muitos dos seus fãs descobriram recentemente.
E também é possível argumentar que a batalha cósmica entre os lados luminoso e negro da Força em Star Wars tenha sido ostensivamente influenciada pelo zoroastrismo.
Freddie Mercury inspirou-se na fé zoroastriana da sua família de origem persa — Foto: Alamy/Via BBC
Considerando todas as suas contribuições para o pensamento, religião e cultura ocidental, relativamente pouco se sabe sobre a primeira religião monoteísta do mundo e seu fundador iraniano.
No pensamento comum e para muitos políticos americanos e europeus, o Irã é considerado o polo oposto de tudo o que defende o mundo livre.
Mas, além dos muitos outros legados e influências iranianas, o zoroastrismo é uma religião que não foi esquecida e pode simplesmente fornecer a chave para entendermos as similaridades existentes entre “nós” e “eles”.