Na época, a dupla deixava para trás um dos países mais pobres do mundo, seguindo os passos de milhares de outros jovens guianenses em busca de uma vida melhor.
Na América do Norte, constituíram família e fizeram carreiras no setor imobiliário e financeiro.
Trinta e nove anos depois, em 2021, eles fizeram o caminho inverso.
“Era hora de voltar”, disse Shiv Misir, hoje com 60 anos, à BBC News Brasil.
Os irmãos foram atraídos pelos bilhões de petrodólares que turbinaram a economia do país nos últimos anos.
Eles montaram um escritório de corretagem imobiliária especializado em vender e alugar imóveis de alto padrão na capital do país, Georgetown.
Shiv e Hemant são dois representantes da nova classe média que surgiu (ou que retornou) ao país nos últimos anos desde o início da exploração de petróleo no país.
Iniciada em 2019, essa exploração transformou a antiga colônia britânica em uma das economias que mais cresce no mundo.
A Guiana é um país localizado no norte da América do Sul, entre o Suriname e a Venezuela.
Tem pouco mais de 800 mil habitantes e surgiu como uma colônia inicialmente holandesa para a produção de cana-de-açúcar.
Somente em 1966 o país foi declarado independente do Reino Unido.
Em 2015, a petroleira americana Exxon Mobil anunciou a descoberta de campos de petróleo gigantes e economicamente viáveis na costa do país.
Nos anos seguintes, o consórcio composto pela Exxon Mobil, a também americana Hess e a chinesa CNOOC arrematou poços a pouco mais de 200 quilômetros da costa guianense.
Até o momento, foram descobertas reservas de aproximadamente 11 bilhões de barris de petróleo, mas estimativas mais recentes apontam que esse volume pode chegar a 17 bilhões.
O valor seria maior que todas as reservas provadas de petróleo do Brasil, estimadas pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) em 14 bilhões de barris.
Até então, a Guiana tinha uma economia baseada na agricultura de subsistência, mineração de ouro e diamantes e extração de madeira.
A partir de 2019, as receitas do petróleo passaram a turbinar o Produto Interno Bruto (PIB) do país.
Em 2020, o então ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, chegou a comparar o país a uma das cidades dos Emirados Árabes Unidos que virou símbolo da riqueza gerada pelo petróleo.
“É a nova Dubai da região, mesmo”, disse Guedes.
Os números, de fato, têm chamado atenção.
‘É como se o país tivesse ganhado na loteria’
Hotel da rede norte-americana Best Western sendo construído em Georgetown por empreiteira chinesa — Foto: LEANDRO PRAZERES/BBC NEWS BRASIL
Entre 2019 e 2023, o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que o PIB do país tenha saído de US$ 5,17 bilhões (R$ 27,7 bilhões) para US$ 14,7 bilhões (R$ 68,2 bilhões), um salto de 184%.
Em 2022, o crescimento do PIB foi de impressionantes 62%.
Na mesma proporção, o PIB per capita (divisão da riqueza do país pelo número de habitantes) também cresceu.
Segundo o Banco Mundial, saiu de US$ 6.477 (aproximadamente R$ 31 mil) dólares em 2019 para US$ 18.199 (R$ 87 mil) dólares em 2022.
Para efeito de comparação, esse valor é mais que o dobro do PIB per capita brasileiro, que em 2022 foi de US$ 8.917 (R$ 39,9 mil).
“É como se o país tivesse ganhado na loteria. É uma chance que só aparece uma vez na vida. Há um otimismo muito grande no país”, disse à BBC News Brasil Diletta Doretti, representante do Banco Mundial para a Guiana e Suriname, que vive há dois anos em Georgetown.
Na esteira do crescimento gerado pelo petróleo, outros setores da economia do país também cresceram.
De acordo com o FMI, o crescimento do PIB não relacionado ao petróleo como indústria, agricultura e construção civil em 2022 foi de 11,5%.
Os reflexos são visíveis pelas principais cidades do país como a capital, Georgetown.
É possível ver guindastes e operários trabalhando em obras de infraestrutura como hospitais, rodovias, pontes e portos e na construção de hotéis de luxo de redes internacionais como as americanas Marriot e Best Western.
Ao longo das novas rodovias, há dezenas de galpões recém-construídos repletos de tratores, escavadeiras e outros equipamentos para a construção pesada para atender à demanda por obras do país.
Foi por conta desse boom econômico que os irmãos Misir decidiram voltar, ainda que não de forma definitiva, à Guiana.
Desde 2021, a dupla faz viagens frequentes entre Toronto, no Canadá, e Georgetown para tocar os novos negócios.
Ele explica que o dinheiro gerado pelo petróleo vem criando oportunidades tanto para o surgimento de uma nova classe média quanto para a atual elite do país.
“As pessoas se sentem mais seguras. Elas sentem que são parte de algo do que elas podem se beneficiar”, diz Misir.
“Há muita gente rica na Guiana que está indo para o ramo imobiliário ou que está atuando na cadeia de suprimentos da indústria do petróleo.”
Shiv Misir deixou a Guiana aos 19 anos em busca de uma vida melhor e voltou há dois anos atraído pelos dólares do petróleo — Foto: LEANDRO PRAZERES/BBC NEWS BRASIL
Misir afirma que conhece outros imigrantes guianenses que vivem nos Estados Unidos ou no Canadá investindo em imóveis ou terrenos no país na expectativa de lucrarem com o boom do petróleo.
Ao chegarem à Guiana, eles passam a integrar, automaticamente, a nova classe média.
“Há muitos guianenses que estão voltando, e eles procuram viver em condomínios fechados, com segurança e imóveis modernos, com todo o conforto com o qual viviam antes, porque passaram a maior parte de suas vidas em países como os Estados Unidos e o Canadá”, diz Misir.
Acostumado a lidar com clientes de alto poder aquisitivo, ele comenta que parte da antiga e da atual elite do país ainda mantém “velhos hábitos” de fazer compras no exterior e que, por isso, ainda não há lojas exclusivas de grifes de luxo no país.
Apesar de ter sido colonizado pelos holandeses e pelos britânicos, o país, assim como vizinhos do Caribe, mantém uma estreita ligação comercial e cultural com os Estados Unidos, a pouco mais de quatro horas de voo.
Segundo ele, a maior parte da elite guianense envia seus filhos para estudar em países como Estados Unidos, Canadá ou na Europa.
Misir diz que esse público aproveita as visitas aos filhos para fazer turismo e aproveitar o “estilo de vida” desses países.
O empresário também diz que, nos últimos anos, o rápido crescimento da economia também encorajou a abertura de empreendimentos focados na elite do país.
“Eles (os ricos da Guiana) vão para os restaurantes de luxo e para os shoppings que foram abertos recentemente. Nossa loja, por exemplo, está em um desses”, disse o empresário.
A corretora de imóveis dos irmãos Misir ocupa uma pequena sala no MovieTowne, que foi inaugurado em 2019, mesmo ano em que começou a exploração comercial de petróleo no país.
No mesmo andar, também há adegas vendendo vinhos importados, inclusive do Brasil, e lojas de perfume com marcas famosas como Dior.
Áreas antes usadas para plantar cana-de-açúcar e arroz agora dão lugar a casas de luxo e condomínios fechados nos subúrbios de Georgetown — Foto: LEANDRO PRAZERES/BBC NEWS BRASIL
Nos subúrbios de Georgetown, as mudanças dão a dimensão das transformações pelas quais o país vem passando — e de como o novo dinheiro que circula no país está criando novos hábitos e paisagens.
Antigas plantações de arroz e cana-de-açúcar, que antes eram importantes fontes de riqueza do país, agora dão lugar a shopping centers com lojas de franquias globais e condomínios fechados que abrigam tanto a nova elite do país quanto os imigrantes que chegam para trabalhar na indústria do petróleo.
Um desses shoppings é o Amazonia Mall, na margem leste do Rio Demerara, a pouco mais de meia hora de carro do centro da cidade.
À distância, é possível ver a placa de uma das suas principais lojas: uma franquia da Starbucks.
A loja foi inaugurada em abril de 2023, tem mais de 200 metros quadrados e 50 funcionários. Ela fica frequentemente lotada.
Procurada pela BBC News Brasil, a Starbucks disse que a abertura da loja no país se deveu ao fato de que o país é, hoje, “um mercado vibrante”.
Canteiro de obras global
Operários chineses e guianenses trabalham em obra de ponte sobre o rio Demerara, na Guiana — Foto: LEANDRO PRAZERES/BBC NEWS BRASIL
Há outros sinais que evidenciam a velocidade com a qual a nova riqueza do petróleo chega à Guiana.
O país passou a atrair empreiteiras de diversos países, inclusive do Brasil, em busca de contratos para construção de obras de infraestrutura que o país, há décadas, necessitava.
Dados oficiais apontam que o governo destinou US$ 187 milhões (R$ 925 milhões) em projetos de infraestrutura como rodovias e portos em 2019, o primeiro ano da exploração comercial de petróleo no país.
Em 2023, o valor subiu para US$ 650 milhões (R$ 3,2 bilhões), um crescimento de 247%.
“Moro aqui há quase dois anos. Toda vez que viajo para fora do país, eu percebo a diferença quando retorno”, diz Diletta Moretti, do Banco Mundial.
“Há muita infraestrutura sendo construída como rodovias novas e hoteis. Você percebe, também, o grande número de missões de negócios que chegam ao país.”
Em meio ao fluxo sem precedentes de recursos, o país se transformou em uma espécie de canteiro de obras global.
A Guiana também passou a ser cortejada por países que oferecem crédito para financiar empreiteiras.
“Temos companhias oriundas do bloco europeu, da China, da Índia, Estados Unidos, Canadá e brasileiras”, disse à BBC News Brasil Deodat Indar, que ocupa o cargo equivalente ao de vice-ministro de Obras Públicas da Guiana.
A China aparece nesse tabuleiro como um dos principais jogadores.
Além de expertise em projetos de infraestrutura, o país tem oferecido dinheiro à Guiana para financiar obras contratadas por empreiteiras do país.
Um consórcio de empresas chinesas, por exemplo, venceu a licitação para a construção de uma nova ponte sobre o rio Demerara. A obra foi financiada pelo Banco da China.
O projeto é considerado vital para o desenvolvimento do país, porque a ponte vai substituir uma com mais de 30 anos de uso cujo fluxo é interrompido várias vezes ao dia para a passagem de embarcações pelo rio.
A nova ponte terá uma estrutura pênsil e permitirá o tráfego de navios abaixo dela. O projeto está avaliado em US$ 260 milhões (R$ 1,4 bilhão).
Empreiteiras do país também são responsáveis pela construção de hotéis e de uma série de hospitais contratados pelo governo da Guiana.
Mas a China tem concorrentes. Em 2022, uma empreiteira da Índia ganhou um contrato para a construção de uma rodovia avaliada em US$ 106 milhões (R$ 524 milhões).
Na esteira do crédito internacional, a Áustria também ofereceu crédito para que uma empresa daquele país pudesse construir um hospital público contratado pelo governo da Guiana. O valor do projeto é de US$ 161 milhões (R$ 796 milhões).
Algumas empresas trazem com elas empregados de seus próprios países. É o caso do consórcio chinês que constrói a ponte sobre o rio Demerara. O canteiro de obras do projeto é dividido por operários chineses e guianenses.
A presença do Brasil nesse canteiro global ainda é considerada tímida por diplomatas ouvidos pela reportagem da BBC News Brasil em caráter reservado.
Mesmo assim, uma companhia do país, a Álya Construtora (antiga Queiroz Galvão), ganhou a licitação para a construção de um trecho de 121 quilômetros de uma rodovia que deverá ligar Lethem, na fronteira com o Brasil, e Linden.
A obra de US$ 190 milhões (R$ 939 milhões) não é financiada por entidades brasileiras, mas pelo Banco de Desenvolvimento do Caribe.
Desde 2017, durante as investigações da Operação Lava Jato, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) suspendeu linhas de crédito para o financiamento de obras de infraestrutura a empresas brasileiras no exterior.
No fim de 2023, a Guiana ficou em destaque internacionalmente devido à antiga disputa entre Venezuela e Guiana pela região de Essequibo, depois que o governo venezuelano realizou um referendo para anexar a região.
Essequibo, com aproximadamente 160 mil km² (pouco maior que o Estado do Ceará), representa 70% do território guianês. É uma região rica em minerais como ouro, cobre, diamantes e, recentemente, lá também foram descobertos enormes depósitos de petróleo e outros hidrocarbonetos.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem prevista viagem à Guiana para a cúpula da comunidade dos Estados do Caribe (Caricom), em 28 de fevereiro.
Riqueza e desigualdade
David Hinds é guianense e vive entre os Estados Unidos e seu país natal há quase quatro décadas.
Ele é professor da Universidade Estadual do Arizona e especializado em estudos sobre o Caribe e a diáspora africana.
Ele explica que a Guiana é um país com uma divisão social e de classe muito marcada.
Entre os séculos 17 e 19, o país foi colonizado por europeus que utilizaram a mão de obra de africanos escravizados para produzir açúcar no país.
Com a abolição da escravidão, em 1833, o Reino Unido passou a levar imigrantes do Leste Asiático, especialmente da região que hoje é a Índia, chineses e portugueses para o país.
Segundo o governo, 39,8% da população é composta por pessoas de origem do leste indiano, 30% são negros de descendência africana, 10,5% são indígenas e 0,5% são de outras origens como chineses, holandeses e portugueses.
Hinds diz que políticas adotadas pelo então império britânico fizeram com que os imigrantes de origem asiática e os portugueses passassem a atuar em áreas como o comércio e a indústria incipiente do país.
“Os descendentes de indianos e os portugueses fazem parte da elite econômica da Guiana”, diz.
Os descendentes de africanos escravizados, por sua vez, explica Hinds, passaram a atuar em empregos com baixa especialização ou no serviço público.
O professor diz que os “novos ricos” da Guiana acabam sendo oriundos da mesma elite econômica que se instalou no país.
“As pessoas que estão aproveitando (o boom econômico) são aquelas que já estão entranhadas na elite da Guiana”, diz o professor.
A BBC News Brasil questionou o governo da Guiana sobre a marcante desigualdade social no país, mas não houve resposta.
O empresário Richard Singh vende carros importados em Georgetown — Foto: LEANDRO PRAZERES/BBC NEWS BRASIL
No Centro de Georgetown, o empresário Richard Singh observa seus funcionários polirem com cuidado pouco mais de 20 carros estacionados em sua revendedora de carros.
Fã de carros e tecnologia desde a infância, ele vende automóveis usados, a maioria importados de países como Japão, uma vez que o país, assim como a Guiana, também utiliza a mão inglesa.
Segundo ele, apesar dos dólares oriundos do petróleo, a elite do país continua preferindo carros de segunda mão porque os impostos para a importação de automóveis zero quilômetro são muito altos e porque o país ainda não teria mão de obra e acesso a peças de reposição, o que faria a manutenção desse tipo de veículo praticamente impossível.
Entre BMWs importadas e carros de montadoras japonesas, Singh disse à BBC News Brasil que houve uma mudança em sua clientela desde o início da exploração de petróleo no país.
Sua loja passou a ser frequentada não mais apenas por pequenos empresários locais e profissionais liberais, como médicos empregados pelo governo.
Agora, ela também é procurada por grandes corporações estrangeiras ligadas à indústria do óleo e do gás ou que vieram a reboque e procuram veículos para seus funcionários e executivos.
Conhecedor dos hábitos de consumo da elite guianense, Singh afirma que consegue ver o surgimento de uma espécie de “nova classe média” no país.
“Sim, há uma nova classe média. Ela está posicionada logo acima da antiga classe média da Guiana”, avalia Singh.
O aumento nos lucros permite que Singh acompanhe uma das suas paixões: corridas de automóvel.
Em maio do ano passado, por exemplo, ele viajou para Miami para assistir ao Grande Prêmio de Fórmula 1.
Mas o empresário acredita que o tão comentado boom na economia do país ainda não teria chegado ao seu ápice.
“Estou muito otimista. Sinto que a Guiana está aguardando para explodir (economicamente)”, diz à Singh.
Entre um carro e outro, Singhs retoma a comparação com Dubai em tom de esperança.
“Sempre vi histórias sobre Dubai. Nos anos 1990, se você fosse lá, era tudo areia e deserto. Agora, você nem reconheceria”, diz.
“Eu tenho esperança e ambição de que, em 20 anos, a gente olhe para trás e diga: ‘Eu não acredito que aquilo era a Guiana’. Espero que aconteça assim aqui também.”