O indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 36 pessoas por tentativa de golpe de Estado, abolição do Estado Democrático de Direito e organização criminosa lança luz sobre o papel das Forças Armadas no mais grave complô contra a democracia brasileira desde a redemocratização.
Generais de alto escalão, como Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira, que ocuparam posições-chave no governo Bolsonaro, estão entre os implicados. A Polícia Federal aponta a existência de uma “organização criminosa” que, em 2022, teria coordenado esforços para manter Bolsonaro no poder, mesmo após sua derrota eleitoral.
O relatório, com mais de 800 páginas, foi enviado ao Supremo Tribunal Federal e agora aguarda a decisão da Procuradoria-Geral da República sobre os próximos passos: novas diligências, denúncias ou arquivamento.
A conclusão do inquérito ocorre dias após vir à tona que os militares também participaram do planejamento de um atentado contra Lula (PT), o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes. A execução de Lula teria sido tramada por um grupo de elite das Forças Armadas, conhecido como “kids pretos”, sob o comando do general Walter Braga Netto.
O relatório final indica que o plano, chamado pelos militares de “Punhal verde e amarelo”, começou a ser arquitetado na casa de Braga Netto em 12 de novembro de 2022, duas semanas dias após o segundo turno das eleições, quando Lula derrotou Bolsonaro (PL).
É necessária uma reforma constitucional que proíba militares de atuar na política sem abdicar da carreira
Apesar de ser apontado como mentor do plano, Braga Netto não está entre os quatro militares presos pela PF na última terça-feira, dia 19. Foram detidos Hélio Ferreira Lima, Mario Fernandes, Rafael Martins de Oliveira e Rodrigo Bezerra de Azevedo, todos integrantes do grupo “kids pretos”.
Na análise do cientista político Rodrigo Lentz, doutor pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Forças Armadas, a conjuntura é favorável à punição dos militares. “Pelo nível de detalhamento da execução que estava em marcha, cria-se um clima politicamente aceitável para o tamanho da responsabilização que os fatos exigem.”
Em entrevista a CartaCapital, o especialista defende que uma possível condenação encerraria uma tradição histórica e negativa no Brasil de beneficiar militares sob o advento da anistia. “É necessário não só responsabilizações individuais, mas também uma resposta institucional.”
Confira os destaques a seguir.
CartaCapital: Qual a importância do País responsabilizar os militares implicados na trama golpista?
Rodrigo Lentz: Em relação aos militares, o País tem um histórico de impunidade e conciliação, de empurrar a sujeira para debaixo do tapete. Historicamente, as anistias sempre beneficiaram os militares de direita. Quando eram militares de esquerda ou de baixas patentes, essas anistias eram bastante limitadas. Este seria um momento favorável para quebrar essa tradição negativa das instituições brasileiras, diante da magnitude dos fatos.
CC: Estaríamos diante de uma mudança significativa em curso, um momento histórico?
RL: Essa mudança já está em curso, de certa forma, ao observarmos que o atual comando do Exército não está atuando para produzir desestabilização – algo que historicamente era comum quando se tentava responsabilizar militares. Até hoje, a responsabilização relacionada à ditadura é usada pelos militares para desestabilizar as relações com civis e o clima político. Hoje, vemos uma escolha por individualizações, uma estratégia do próprio ministro da Defesa [José Múcio] para separar CPFs de CNPJs. No entanto, é importante salientar que muitos líderes dessa conspiração estavam ligados ao CNPJ das Forças Especiais, especialmente do comando dos ‘kids pretos’, de Goiânia. É necessário não só responsabilizações individuais, mas também uma resposta institucional, como a extinção desse comando e outras reformas no âmbito militar.
CC: Quais reformas seriam necessárias? O governo Lula teria condições de implementá-las sem criar atritos com as Forças Armadas?
RL: Existe uma agenda de reformas para as Forças Armadas, defendida há tempos por especialistas em estudos de defesa e ciência política. Diante desses acontecimentos, a substituição das Forças Especiais do Exército, origem da maioria dos militares envolvidos, por uma força especial da Polícia Federal vinculada ao Ministério da Justiça e comandada por civis, seria uma medida importante. As investigações têm mostrado que há algo estrutural nesse comando que demanda uma resposta contundente para cessar conspirações contra a democracia. O presidente Lula poderia encaminhar essas reformas com habilidade política e apoio dos Três Poderes, criando um consenso em que a negativa a tais medidas fosse isolada. Temos um momento até mais oportuno do que o 8 de Janeiro para uma reforma das relações cívico-militares, porque tanto o Exército quanto o governo precisam dar uma resposta à sociedade.
O professor Rodrigo Lentz – Créditos: Reprodução/CartaCapital
CC: O alinhamento ideológico dos militares ao bolsonarismo foi contido? Há riscos em 2026?
RL: As Forças Armadas permanecem como uma instituição ideológica, com viés conservador, neoliberal e antiesquerda. Isso é uma herança histórica da ditadura. Enquanto não enfrentarem esse passado, ele continuará sendo usado para acomodar e ameaçar o poder civil. O que mudou foi a divisão interna no Alto Comando e as traições à honra militar, como no caso de Braga Netto. A partidarização ainda não foi eliminada, e é necessária uma reforma constitucional que proíba militares de atuar na política sem abdicar da carreira. Essa mudança seria essencial para proteger a democracia em futuros governos, especialmente em 2026. Até lá, é preciso que essa ameaça tire o sono dos democratas.
CC: Em caso de responsabilização dos militares, qual seria o impacto para as Forças Armadas?
RL: A responsabilização não seria apenas um recado, mas um marco na consolidação da democracia de 1988, que subordinou formalmente os militares ao poder civil. No entanto, a recuperação da imagem das Forças Armadas exigirá reformas profundas para impedir que seus líderes perpetuem a associação da instituição com autoritarismo e golpismo. A responsabilidade individual deve ser acompanhada de mudanças estruturais que protejam a democracia.