Dessa forma, ele manifestou apoio ao poder concedido pelo governo local aos milhares de militares destacados durante dias no país, onde a grande escalada de violência levou o presidente, Daniel Noboa, a declarar estado de conflito armado interno e ordenar às Forças Armadas “neutralizar” grupos ligados ao tráfico de drogas e ao crime organizado.
Na quinta-feira (11/1), a Assembleia Nacional apoiou por unanimidade essa intervenção, que havia sido proposta pelo presidente dois dias antes.
Embora insuflado pelos acontecimentos, o plano do Equador não é novo.
Já em dezembro, o Congresso do país votou a favor da reforma da Constituição – que incumbe aos militares a defesa da soberania e da integridade territorial e à polícia a ordem pública interna – para que as Forças Armadas também apoiem o combate ao crime e às drogas.
E no resto da América Latina isso também não é novidade.
A região está repleta de exemplos, do México ao Cone Sul, de como foram atribuídas aos militares – temporária ou praticamente de modo permanente – funções de combate ao tráfico de drogas que por vezes contribuíram para o desenvolvimento de operações bem-sucedidas e, em muitas outras, tiveram os resultados prejudicados por situações obscuras na história recente.
Para David Saucedo, especialista mexicano em segurança pública, um dos motivos para que os governos latino-americanos tenham recorrido com tanta frequência a esse tipo de operação é a pressão histórica dos Estados Unidos, que reclamava de uma extrema debilidade nos sistemas de Justiça e segurança pública da região.
“As polícias na América Latina, em geral, têm se caracterizado pela corrupção infinita e pela fraqueza no enfrentamento do tráfico de drogas, e por não conseguir impedir que ele penetre nas instituições”, comenta.
Isso, somado ao fato de o poder dos cartéis “exceder em muito as capacidades de qualquer Secretaria de Segurança Pública ou Ministério do Interior”, levou muitos países a confiar no Exército, que goza de uma imagem positiva entre grande parte dos cidadãos e possui grande armamento e capacidade de implantação territorial, disse o especialista à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Milhares de soldados no Equador enfrentaram os grupos ligados ao tráfico de drogas e ao crime organizado — Foto: AFP
O México é um dos exemplos mais claros dessa tendência.
O envolvimento dos militares do Exército nas operações antidrogas remonta às décadas de 1970 e 1980, quando começaram a participar da erradicação dos cultivos ilícitos e lideraram golpes importantes como o realizado em 1984 contra a fazenda de Rafael Caro Quintero, líder do cartel de Guadalajara, e que terminou com a queima de milhares de toneladas de maconha.
Os esforços militares contra o tráfico de drogas continuaram desde então, embora tenha sido sem dúvida durante o governo do ex-presidente Felipe Calderón (2006-2012) que se registrou um divisor de águas quando foi lançada a conhecida “guerra às drogas”.
Todos os comandos militares estiveram envolvidos nessa estratégia com o objetivo de recuperar territórios das mãos do crime organizado.
Mas as autoridades mexicanas reconheceram apenas quatro anos mais tarde que não tinham alcançado o seu objetivo em meio à violência crescente, que culminou com o número de homicídios (121 mil) terem duplicado no mandato de seis anos de Calderón, quando comparado ao governo anterior.
Foi também nesse período que foi lançada a Iniciativa Mérida, o programa dos EUA que visa “combater a violência alimentada pelas drogas”, através do qual transferiu milhões de dólares em equipamento militar para o México, especialmente durante a sua primeira fase iniciada em 2008.
“A guerra contra as drogas é uma experiência fracassada e foi antes uma estratégia política do presidente Calderón para obter legitimidade para o seu governo. Infelizmente, essa política foi continuada no mandato de seis anos de Enrique Peña Nieto e no atual de López Obrador”, enfatiza Saucedo.
O ex-presidente Felipe Calderón foi o arquiteto da chamada “guerra às drogas” no México — Foto: GETTY IMAGES
A Colômbia é outro país com uma longa tradição no uso da força militar contra o tráfico de drogas. Catalina Miranda Aguirre, pesquisadora da Fundação Ideias para a Paz no país, frisa que a Polícia Nacional teve um papel muito mais importante nessa área nas últimas décadas.
No entanto, os militares do Exército foram ganhando presença especialmente após a aprovação em 2000 do Plano Colômbia, pelo qual os EUA também reforçaram a capacidade militar do país com milhões de dólares.
“(Os militares do Exército) começaram a desempenhar um papel muito importante em termos de segurança interna numa altura em que a polícia não tinha capacidades suficientes para lidar com um nível de criminalidade tão impressionante”, destaca a especialista em entrevista à BBC News Mundo.
E acrescenta: “Suas capacidades são fortalecidas não apenas para combater o tráfico de drogas, mas também a insurgência. Na Colômbia, a insurgência e o tráfico de drogas estão ligados em um momento da história, não é possível separá-los”.
Ao longo dos anos, ocorreram golpes importantes contra os líderes das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e de outros grupos insurgentes, como o ELN (Exército de Libertação Nacional) ou o Clã do Golfo.
Contudo, o Exército também protagonizou escândalos como o episódio que ficou conhecido como “falsos positivos”, em que execuções extrajudiciais de civis não ligados ao conflito foram registradas como se fossem mortes de supostos guerrilheiros, para conseguirem compensações e reconhecimento.
“A lição aprendida com isso foi muito dura e o aumento da participação das Forças Armadas surtiu efeito e tornou muito complexa a gestão dessa parte na Colômbia. Até que ponto é uma guerra de insurgências e até que ponto é uma guerra às drogas”, questiona Steven Dudley, codiretor e cofundador do portal especializado Insight Crime.
Em 2008 veio à tona o escândalo dos “falsos positivos” na Colômbia. — Foto: GETTY IMAGES
Os resultados
A militarização das operações contra o tráfico de drogas também foi observada no Brasil e na Venezuela, entre outros países. Também ocorreu durante estados de exceção temporários impostos na Guatemala e em Honduras.
O caso mais recente é o de El Salvador, onde o Exército também foi usado contra gangues ligadas ao tráfico de drogas e ao crime organizado durante os últimos quase dois anos em que a violência foi drasticamente reduzida, mas ao mesmo tempo houve denúncias de violações dos direitos humanos.
“O risco para o Equador é cair na tentação de promover o chamado ‘modelo Bukele’ baseado num ‘estado de exceção permanente’ com foco no encarceramento em massa, julgamentos sumários e na cooptação do sistema de justiça e que, embora gere ‘bons resultados iniciais’, é duvidoso que estas sejam sustentáveis ao longo do tempo”, diz Carolina Jiménez Sandoval, presidente do Escritório de Washington para Assuntos Latino-Americanos (WOLA).
Avaliar essas incursões militares com números é complicado, dada a dificuldade de atribuir os resultados obtidos exclusivamente a elas – e não a outras forças de segurança com as quais trabalham em conjunto – bem como à impossibilidade de saber o que teria acontecido se não estivessem envolvidas nessas tarefas.
“Em países como Brasil, México e Colômbia, os destacamentos militares para combater o tráfico de drogas nem sempre tiveram os resultados esperados. Por vezes até levaram a um aumento da violência”, publicou o portal Insight Crime num artigo de 2019 sobre a decisão do governo chileno da época de enviar o Exército para a sua fronteira norte para impedir a entrada de drogas.
“Os resultados são positivos e negativos”, diz o codiretor Dudley. “O lado positivo é que os militares podem assumir o controle de áreas onde os grupos do crime organizado podem exercer um poder muito forte, ou podem capturar membros de alto nível destes grupos.”
O negativo, garante – e todos os especialistas consultados concordam – é que os militares não têm formação específica para esse tipo de tarefa nem para interagir com a população civil com a qual inevitavelmente devem interagir.
“Temos batalhões que estão muito próximos de municípios que normalmente são abandonados pelo Estado, e onde a possibilidade de violações dos direitos humanos é muito grande. Já aconteceu na Colômbia, no México, nas favelas do Brasil etc”, resume a colombiana Miranda Aguirre.
“Esse é o dilema de como equilibrar a ameaça que a polícia não consegue enfrentar sozinha, juntamente com a protecção dos direitos da população civil que está no fogo cruzado entre o crime organizado e a força mais letal de um Estado, como é uma força militar. Isso tem sido um grande problema”, acrescenta.
Perspectiva de futuro
Jiménez Sandoval, da WOLA, diz que “a militarização da segurança cidadã e as respostas improvisadas que não parecem atender aos critérios básicos de razoabilidade, necessidade e proporcionalidade no uso da força nunca são a estratégia mais adequada para combater a violência na sociedade”, diz, afirmando que isso já pode ser exemplificado por experiências de países como México e Colômbia.
Os especialistas apontam também para outro efeito indesejável da militarização da segurança, que é o fato de os próprios traficantes de droga também estarem, de certa forma, se militarizando. Assim, nos últimos anos, aumentou o uso de minas terrestres, drones ou aeronaves.
“O tráfico de drogas tem a capacidade de se armar ainda mais forte que o Exército”, alerta Saucedo.
Raúl Benítez Manaut, pesquisador da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e presidente do Coletivo de Análise de Segurança com Democracia (CASEDE), associa essa militarização dos criminosos ao enfraquecimento do comando civil e da política.
“Em um país normal, a democracia vem acompanhada de polícia civil. Onde há muito crime, os militares assumem o controle e isso enfraquece a democracia. E o risco é que não tenha reversão, o que é muito difícil”, diz à BBC Mundo.
A verdade é que, olhando para o futuro, não parece que essa tendência vai diminuir na América Latina, a julgar pelas declarações de governos como o da Colômbia ou do México, cujo presidente depositou a sua máxima confiança no Exército para levar a cabo diferentes tarefas e que também enfrenta pressão do seu vizinho, os Estados Unidos, para fazer mais pela luta contra as drogas.
“Essa estratégia (dos militares contra o tráfico de droga) está bastante implementada, por isso esperaria mais formação e mais armas para esse tipo de atividades. Isso não vai desaparecer, se é que não vai aumentar”, conclui Dudley, do Insight Crime.