Os ministros do Supremo Tribunal Federal começaram a analisar nesta quarta-feira 26 um conjunto de ações que discutem se as redes sociais podem ser responsabilizadas por não remover conteúdos publicados por seus usuários mesmo sem ordem judicial. Todas têm relação com trechos do Marco Civil da Internet, que disciplina o uso da internet no Brasil.
Atualmente, as plataformas estão isentas de responsabilidade sobre o que é compartilhado por terceiros, exceto se descumprirem ordens judiciais que determinem a retirada do conteúdo. Essa regra está prevista no artigo 19 do Marco, um dos pivôs da discussão no tribunal. Diz o trecho da lei:
“O provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.
Na sessão desta quarta, ocorreram apenas a leitura dos relatórios e as sustentações orais das partes envolvidas. A análise deve prosseguir nesta quinta, com os votos dos ministros.
Havia a expectativa de que o Congresso Nacional se debruçasse sobre o tema a partir do PL das Fake News, o que não ocorreu. A pressão da bancada bolsonarista e das big techs barrou a tramitação e, por fim, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), anunciou um grupo de trabalho para tratar do tema — o que também não avançou.
São três as ações em análise:
- Recurso do Facebook que questiona se o artigo 19 do Marco Civil da Internet é constitucional (relatoria do ministro Dias Toffoli)
- Recurso do Google que questiona se um provedor de serviços se torna responsável ao armazenar ofensas produzidas por usuários e se deve fiscalizar material previamente (relatoria de Luiz Fux)
- Ação que questiona se o Marco Civil da Internet pode ser usado para fundamentar ordens de suspensão de aplicativos (relatoria original da ministra aposentada Rosa Weber)
Ao abrir os trabalhos, Dias Toffoli e Fux ressaltaram a delicadeza do tema no momento em que faziam um apanhado geral sobre cada uma das ações. Explicaram o porquê de as decisões do tribunal possuírem repercussão geral (isto é, valerão para todas as situações semelhantes na Justiça) e mencionaram as audiências públicas realizadas pela Corte no ano passado.
No caso do recurso do Facebook, a disputa surgiu em São Paulo quando uma dona de casa descobriu a existência de um perfil falso na rede social utilizando o nome e a imagem dela para divulgar conteúdos ofensivos. A mulher acionou a Justiça e obteve, em primeira instância, a ordem para a exclusão da página, mas não foi indenizada.
Insatisfeita, ela recorreu da decisão e teve sucesso. A plataforma foi, então, condenada ao pagamento e tenta reverter a punição no STF. “Não se trata exclusivamente de criação de perfil falso. Nós estamos a discutir, sim, perfil falso, mas também conteúdo falso, ofensivo e ilegal”, observou Toffoli.
O advogado José Rollemberg Leite Neto, defensor do Facebook na Corte, sustentou que a demora para a exclusão da página ocorreu em razão de divergências quanto à falsidade do perfil e à possível violação dos termos de uso contratuais. Além disso, disse que, como “não era flagrante a ilegalidade”, a rede social decidiu aguardar a decisão da Justiça porque “havia fortes dúvidas sobre a denúncia”.
Na avaliação de Neto, seria impossível permitir que os provedores decidam sobre conteúdos críticos, sendo necessária a mediação judicial em casos de dúvida. O advogado ainda defendeu que as situações contempladas neste caso sejam restritas a postagens alusivas a terrorismo, racismo, abolição violenta do Estado de Direito e tentativa de golpe de Estado, entre outros.
A ação movida pelo Google tem relação com o antigo Orkut. Uma professora de ensino médio pediu a exclusão de uma comunidade chamada “Eu odeio a Aliandra”, criada em 2009 – antes, portanto, do Marco Civil – para veicular conteúdo ofensivo. A empresa negou o pedido, mas a Justiça entendeu que a companhia deveria ser responsabilizada pela não exclusão.
O Google, contudo, tem alegado que a exclusão da comunidade antes da aprovação do Marco violaria a liberdade de expressão dos usuários. O advogado da empresa, Eduardo Bastos de Mendonça, afirmou ao STF que a companhia reconhece os desafios da desinformação e dos discursos de ódio na internet e fora dela, mas rechaçou o que chamou de “visão simplista” que atribui às plataformas a responsabilidade por “intolerância, ódio e incivilidade”.
Segundo o defensor, declarar a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco “não acabaria com os problemas que têm de ser resolvidos”, uma vez que a internet ampliou a liberdade de expressão ao possibilitar que cada pessoa se manifeste diretamente. Por fim, sustentou que o trecho da legislação já prevê a responsabilização dos infratores e alertou para o que considera riscos para a remoção automática de conteúdos sem ordem judicial.
Por outro lado, o advogado Daniel Pires Novais Dias, representante da Associação Brasileira de Centros de Inclusão Digital, entidade que atua nos processos como amicus curiae (uma espécie de terceiro interessado na causa), criticou a exigência de ordem judicial para a responsabilização de plataformas digitais, apontando que essa prática não promove a liberdade de expressão de forma eficaz.
O Instituto Brasileiro de Direito Civil considera que a atual redação do artigo 19 do Marco “fragiliza vítimas de danos no ambiente digital”. Já o Instituto Alana, organização da sociedade civil voltada à infância, afirma que as empresas de tecnologia “têm obrigação constitucional mesmo antes do advento do Marco”.
Braço jurídico do governo federal, a Advocacia-Geral da União também age como amicus curiae nos dois recursos citados. O órgão já avaliou que, diante de situações específicas, “há a possibilidade de as plataformas digitais serem responsabilizadas, independentemente de haver ordem judicial prévia para a remoção do conteúdo, considerando o dever de precaução que devem ter as empresas, por iniciativa própria ou por provocação do interessado”.