Esta foi a primeira vez que um presidente de Portugal — que é o chefe de Estado no país — reconhece a culpa. No ano passado, Rebelo de Sousa disse que Portugal deveria se desculpar pela escravidão transatlântica e pelo colonialismo, mas não chegou a pedir desculpas completas.
O presidente de Portugal não tem as mesmas atribuições que o presidente do Brasil, por exemplo. Lá, as funções executivas e decisórias ficam com o primeiro-ministro, eleito pelo Parlamento.
Portugal foi o país que mais traficou africanos na era colonial. Foram quase 6 milhões deles, quase a metade do total de pessoas escravizadas à época pelos países europeus. Os principais destinos foram o Brasil e Caribe.
Nesta reportagem, você vai ver:
- O que disse Marcelo Rebelo?
- Qual o efeito prático de sua fala?
- Qual foi a repercussão em Portugal e no Brasil
- Impacto da escravização
- Algum país já promoveu iniciativas similares de reparação?
O que o presidente português disse?
Marcelo Rebelo de Sousa falou sobre a dívida histórica de Portugal pela escravidão em conversa com correspondentes estrangeiros na noite de terça-feira (23). Ele também disse que sugeriu a seu governo fazer reparações pela escravidão e que seu país “assume total responsabilidade pelos danos causados”, como massacres a indígenas, a escravidão de milhões de africanos e bens saqueados.
“Temos que pagar os custos (pela escravidão). Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso”, declarou o presidente português.
Na conversa, no entanto, Marcelo Rebelo não especificou de que forma a reparação será feita.
Ele afirmou ainda que reconhecer o passado e assumir a responsabilidade por ele era mais importante do que pedir desculpas. “Pedir desculpas é a parte mais fácil”, disse.
A fala tem um efeito prático?
Por ora, não. Em Portugal, o presidente é o chefe de Estado, que é o representante público mais elevado do país e tem poder mais simbólico do que prático. O primeiro-ministro Luis Montenegro é o chefe de governo do país, que representa a figura principal da política do país e governa de fato. Ele foi empossado em março.
O jornal português “Expresso” relatou ter ouvido integrantes do governo, que, segundo a publicação, classificaram o tema de “tóxico” e “inoportuno”.
De toda forma, a fala de Marcelo Rebelo é importante por marcar a primeira vez que um presidente de Portugal reconhece a culpa pela escravidão e a colonização.
Luis Montenegro em imagem de 18 de março de 2024 — Foto: Patricia de Melo Moreira/AFP
A fala do presidente Marcelo Rebelo gerou reações tanto em Portugal quanto no Brasil.
“O que o Presidente da República disse hoje ao país é a maior traição à pátria e ao povo português de que há memória. Não esqueceremos”, disse o partido Chega em publicação no X (antigo Twitter).
Impacto da escravização
Durante mais de quatro séculos, pelo menos 12,5 milhões de africanos foram sequestrados, transportados à força por longas distâncias, principalmente por navios e comerciantes europeus, e vendidos como escravos. Os que sobreviviam à viagem foram enviados para trabalhar sem qualquer remuneração em plantações no Brasil e no Caribe.
Portugal foi o país que mais traficou africanos na era colonial. Foram quase 6 milhões deles, quase a metade do total de pessoas escravizadas à época pelos países europeus.
Até hoje, no entanto, autoridades do país falam pouco do crime, e as escolas também quase não abordam o papel de Portugal na escravidão transatlântica.
Em vez disso, a era colonial de Portugal — durante a qual países como Angola, Moçambique, Brasil, Cabo Verde e Timor Leste, além de partes da Índia, foram submetidos ao domínio português — é frequentemente vista como uma fonte de orgulho.
A ideia de pagar reparações ou tomar outras medidas pela escravidão transatlântica vem ganhando força em todo o mundo, incluindo esforços para estabelecer um tribunal especial sobre a questão.
Algum país já promoveu iniciativas similares de reparação?
Alguns países ao redor do mundo já tomaram ações de reparação histórica decorrentes de colonização ou escravização, mas ainda são poucos.
Na Holanda, o primeiro-ministro Mark Rutte pediu desculpas em 2022 pelo envolvimento do país no comércio de escravos e anunciou a criação de um fundo de 200 milhões de euros (cerca de R$ 1,1 trilhão) para iniciativas, sobretudo no campo da educação, de combate ao legado da escravização em ex-colônias.
No Canadá, o governo criou uma comissão de reconciliação com os povos indígenas locais e anunciaram em 2023 um pacote de indenização de US$17,35 bilhões (R$ 89,3 bilhões).
A Organização das Nações Unidas (ONU) lançou em 2023 um relatório pedindo para que os países considerassem adotar reparações financeiras pelo período de escravidão.
O relatório destacou que a dificuldade em viabilizar uma reivindicação legal de compensação financeira “não pode ser a base para anular a existência de obrigações legais devidas”.