Eles formavam o primeiro grupo de imigrantes ilegais que o governo britânico pretendia levar à força para a Ruanda, a partir de um acordo entre os governos britânico e ruandês. O plano, fortemente defendido pelo então primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, acabou barrado pela Suprema Corte do país.
Reino Unido aprova lei para enviar imigrantes para a Ruanda
Mas nem o avião detido em plena pista de decolagem nem a sentença de ilegalidade da Suprema Corte conseguiram impedir que o Reino Unido seguisse adiante com o plano: nesta semana, dois anos depois da primeira tentativa, o Parlamento britânico aprovou a mesma lei, com manobras legais para driblar o veto da Justiça. A medida é endossada pelo primeiro-ministro Rishi Sunak, filho de imigrantes indianos.
A lei, uma das principais bandeiras do governo do país, consiste em enviar de avião para abrigos em Kigali, capital da Ruanda, grupos de pessoas que tenham entrado no Reino Unido de forma ilegal e solicitado asilo e refúgio no Reino Unido. Em troca, Londres pagará cerca de 370 milhões de libras esterlinas (cerca de R$ 2,3 bilhões) aos cofres ruandeses.
O modelo, inédito no mundo, já foi considerado ilegal pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela própria Suprema Corte do Reino Unido. Nesta terça, o chefes do Alto Comissariado da ONU para Refugiados e para Direitos Humanos pediram que o Reino Unido reconsidere a decisão.
O foco são imigrantes em busca de asilo que chegam ao Reino Unido em barcos ao cruzar o Canal da Mancha. Segundo o Ministério do Interior britânico, 6.265 barcos chegaram ao país, 24% a mais que o mesmo período de 2023. A maior parte (40%) foi de vietnamitas e afegãos em 2024. Veja os dados abaixo:
- 2021: 28.526 barcos
- 2022: 45.774
- 2023: 29.437
- 2024* (até 21 de abril) : 6.265
O Canal da Mancha é atualmente a principal porta de entrada de migrantes irregulares no Reino Unido e a etapa final de uma jornada que costuma começar na África Central e segue pelo norte do continente até o sul da Europa através das perigosas travessias pelo Mediterrâneo.
Nesta terça, cinco pessoas morreram numa travessia. Os migrantes morreram afogados por volta das 5h no horário local depois de uma confusão dentro do barco inflável em que estavam, segundo a polícia francesa. A suspeita é de que a embarcação estava superlotada.
Primeiro grupo será levado para Ruanda em julho
O primeiro grupo, disse o governo, será enviado em julho deste ano — até lá, no entanto, críticos da polêmica lei prometem uma nova batalha na Justiça para tentar impedir novamente que o plano entre em vigor.
O principal argumento é que a medida infringe o “non-refoulement”, um dos princípios fundamentais do direito internacional e que proíbe que um país devolva ou deporte qualquer pessoa que entre em seu território solicitando asilo ou refúgio.
“As violações ao Direito Internacional (tanto dos Refugiados quanto dos Direitos Humanos) são múltiplas, com destaque para os temas de perseguição e non-refoulement, que são pedras angulares da proteção do direito de asilo por meio do refúgio”, disse ao g1 a doutora em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo, mestre pela NYU School of Law e especialista em refúgio e direitos humanos.
O Estatuto dos Refugiados, documento ratificado pela Convenção de Genebra de 1951 e do qual o Reino Unido é signatário, também proíbe a devolução de migrantes e determina que qualquer pessoa que fuja de um país em guerra ou alegue sofrer perseguições políticas, por raça ou orientação sexual tem o direito de ir a outro país e solicitar asilo nele.
O governo britânico alega que Kigali é uma cidade segura e que os imigrantes estarão protegidos. E o argumento foi a grande manobra que o governo de Rishi Sunak encontrou para driblar a Suprema Corte: no texto do novo projeto de lei aprovado esta semana, o Executivo determina que a Justiça terá de provar que os abrigos ruandeses não são um lugar seguro.
Já um caso recente depõe contra esse argumento: no início do ano, dois imigrantes indianos que haviam chegado ao território britânico de Diego Garcia, no Oceano Índico, foram enviados para cuidados médicos a hospitais em Kigali, já como um teste do projeto do governo britânico.
Os dois alegaram ter sido abusados sexualmente, afirmaram que as condições do abrigo são péssimas e abriram um processo contra o governo de Rishi Sunak.
Insistência
Mas por que, mesmo com as proibições, infrações e críticas, o governo britânico insiste em levar o projeto adiante?
O Partido Conservador, que comanda o Reino Unido desde 2010, tem uma política anti-imigração. Por isso, há mais de uma década, o governo do país vem tentando alternativas para reduzir o número de migrantes.
A grande bandeira do Brexit, defendido desde 2014 pelo então primeiro-ministro Boris Johnson, aprovado pela maioria da população em 2016 e efetivado em 2020, teve como grande bandeira a promessa de frear o número de estrangeiros no país.
Mas o divórcio com a União Europeia não fez o fluxo diminuir. Pelo contrário. Desde então, o país bateu vários recordes em chegadas de imigrantes — em 2021, os números triplicaram na comparação com os de 2019. Os números de 2024 seguem em alta: 6.265 barcos chegaram ao Reino Unido de barco via Canal da Mancha, 24% a mais que o mesmo período de 2023
Em 2023, o governo britânico havia testado outra ideia: construiu espécies de prédios flutuantes em portos no sul da Inglaterra para reter lá os solicitantes de asilo.
A nova lei
Boris Johnson interage com alunos de uma escola em Kigali, capital da Ruanda, em visita à Ruanda para defender polêmico acordo de envio forçado de imigrantes do Reino Unido ao país africano, em 23 de junho de 2022. — Foto: Dan Kitwood/ AFP
O projeto de lei aprovado na segunda-feira pelo Parlamento britânico permite que o governo envie os imigrantes que chegaram de qualquer lugar do mundo e pediram asilo em solo britânico a entrar em um avião que os leve para Ruanda –mesmo que a pessoa nunca tenha pisado em Ruanda.
A expectativa é que ainda nesta semana o rei Charles III dê o consentimento real e que o projeto vire lei.
O primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, disse que o governo já fretou aviões comerciais e treinou cerca de 500 trabalhadores do setor de aviação para levar os imigrantes para Ruanda.
O pedido de asilo vai ser julgado pelo governo ruandês, e se for aceito, as pessoas vão receber a condição de refugiadas em Ruanda, e não no Reino Unido.
Para receber esses imigrantes, Ruanda vai receber do governo britânico um total de 370 milhões de libras esterlinas (cerca de R$ 2,3 bilhões) em um período de cinco anos.
Imigrantes que chegaram ilegalmente
Rishi Sunak falando sobre questão dos imigrantes ilegais — Foto: JN
Para o governo, um dos efeitos das deportações para Ruanda será diminuir o fluxo de pessoas que entram no Reino Unido de forma ilegal.
A agência de notícias Associated Press fez uma comparação com os números de pequenos barcos que chegaram ao litoral do Reino Unido em três momentos.
- Em 2018, foram 299.
- Quatro anos depois, em 2022, foram 45.774.
- No ano passado, o número de barcos foi de 29.437.
Segundo a AP, há grupos criminosos especializados em levar pessoas até o litoral do Reino Unido em pequenos barcos, partindo da Europa continental.
Críticas ao projeto
As pessoas que discordam do projeto afirmam que a ideia de deportar pessoas a um país com o qual elas não têm nenhuma relação e para onde não queriam ir é desumano.
Lucy Gregg, diretora do grupo Liberdade contra a Tortura, pediu para que o governo “comece a tratar os refugiados de forma decente e pare de tentar enviá-los para longe em um futuro incerto em Ruanda”.
Os críticos também dizem que Ruanda não tem um histórico de respeito aos direitos humanos e que os imigrantes podem acabar sendo enviados aos seus países de origem, de onde fugiram e onde correm riscos.
A nova lei estabelece que algumas regras de proteção aos direitos humanos no Reino Unido não se aplicarão ao esquema.
Dificuldades legais
Em junho do ano passado, a Justiça do país decidiu que a medida era ilegal. Para não contrariar essa decisão, o texto aprovado pelo Parlamento nesta terça-feira determina que os juízes britânicos precisam considerar que Ruanda é um destino seguro para os imigrantes antes que eles sejam colocados nos aviões.
Segundo o “New York Times”, mesmo com a aprovação da lei deve haver judicialização dessas tentativas de deportação. De acordo com o jornal, é possível que o governo consiga enviar alguns aviões com imigrantes para Ruanda antes das eleições gerais do país, que devem acontecer no segundo semestre, mas o custo dessas operações serão muito altos.